terça-feira, 31 de julho de 2012

Chega de Mim


Proferir. Proclamar. Declarar. Amor. Nada disso me mata, sequer me atinge, por dentro ou por fora. Não basta. É raso. Não tem osso. Não tem carne. Falta calor.

Sou difícil de lidar. São poucos os que me suportam. Menos ainda os que sabem conviver bem comigo. Tem que ter brio. Pedras no coração. Gelo na alma. Ninguém consegue me traduzir. Sou única. Poderosa. Quase indestrutível.

Quando quero (e sempre quero), sou destruidora de gente. Sou voraz. Faminta. Aniquilo pessoas. Roubo o apetite de viver. Acinzento doces vistas. Explodo pontes para interromper caminhos. Sugo energias. Até o fim da alma. Sem dó. Sem culpa. Estou no topo da cadeia alimentar. Elementar.

Tudo isso torna o meu antídoto ainda mais valioso. Tente me matar. Experimente conseguir me matar. O cinza volta a dar lugar às tonalidades vivas. Brilhantes. A voracidade da dor é trocada pela fome de ser feliz e de gozar a vida. Mate-me mesmo. Me extermine com prazer. Com um abraço. Com um sorriso. Eu vou embora.

Até voltar numa próxima vez. Para uma briga ainda maior. Porque você jamais aprenderá a lidar comigo, seja velho, novo, fraco ou forte. Volto mesmo. E arranco tudo. Um dia a mais comigo é um dia a menos para você. Quando quero. Sempre quero.

Já deu para entender a ideia. Do meu poder. Do tempo que detenho em minhas mãos para te arrebatar e te prender em solos profundos, inatingíveis à luz do sol.

Deixa para lá. Já dei o meu recado. Agora chega de falar de mim.

Chega de saudade.




sexta-feira, 27 de julho de 2012

Reflexões Incolores de um Colarinho Branco

Estou no limbo. Não sei ainda se sou um felizardo ou um sobrevivente. A bandidagem da qual fui adepto ainda me persegue. Na realidade, eu é que a persigo. Gosto de lembrar do que fiz, mas, pelo meu atual estado de putrefação física e mental, jamais voltarei a fazer. Sou um bandido mesmo, literalmente. De alta classe, colarinho branco e tudo, mas um bandido. Com prazer total em ser. Na veia, na essência. Tinha casa grande, esposa bonita e amigos fiéis ao meu esquema, que fariam tudo por mim. Hoje estou abandonado. Um grande marginal, histórico, abandonado e falido.

Não me arrependo de nada do que fiz na vida. Acho que é por isso que ainda estou aqui, firme e forte. Quer dizer, nem tão firme, nem tão forte. Mas esse não é o ponto. O ponto é que, ao contrário dos meus colegas do ramo, não dei pra trás. Não fraquejei. Não me arrependi de ser quem fui. Aliás, de ser quem sou. Na minha área de atuação, não existe “ex”. Se fisicamente eu não posso mais trabalhar, não quer dizer que eu não pense como antes. Sou um caçador.
Os meus comandados costumavam me respeitar. Sabiam quem era o chefe. Quem, de fato, mandava prender e mandava soltar. Uma metáfora, claro. Mais ou menos. Eu devia ter sido preso por tudo que fiz. Mas não fui. Paciência. Não mancha o meu currículo. Pelo contrário, eu acho. Mostra como fui bom nesse negócio. Muito bom. E agora estou aqui, definhando aos poucos a minha natureza para tentar me convencer de que a vida valeu à pena. Que o meu estado atual é normal da idade, que não é castigo de Deus.
Depois de tantos anos, fico aqui refletindo se valeu à pena. Se fiz tudo aquilo que sempre sonhei. Será que era isso mesmo que eu queria dela? Era isso que eu imaginava ao colocar aquela faixa? Foi isso que eu projetei quando me sentei naquela cadeira pela primeira vez? E depois? Quando eu saí, da forma que eu saí, foi justo? Podia ter sido melhor?
No fim das contas, não tenho resposta para essas perguntas. Não sei dizer se foi bom ter sido o mais jovem Presidente da República da história do país. Acho que teria sido melhor se eu não tivesse saído antes da hora, sem aquele estardalhaço todo. Mas gostei dos holofotes, pelo menos. Sou cara de pau, não cara pintada. Bem, não me arrependo de nada mesmo.
Faria tudo de novo, ah, se faria.
Bons tempos, que não voltam mais. Não comigo.
Passei o bastão.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Mundo virtual, Photoshop real


Era um belo dia de fevereiro, quando uma nave (sim, uma nave) nada discreta aterrissou. Nela havia um homenzinho verde. Homenzinho não, uma criatura. Um extraterrestre, com anteninhas e tudo, daqueles de filmes. O ano? 2012, claro. O país? Não, não foi nos Estados Unidos. Isso é um conto, não um filme. O E.T chegou ao Brasil mesmo, evidente. No Rio de Janeiro, óbvio.

A chegada desse inesperado visitante passou imperceptível. Tudo porque o estranho ser viera em meio às festividades do Carnaval. Seus trejeitos e figurino estranhos não foram notados. Era fantasia, podia se supor, e todos supunham mesmo. Ele foi andando por aí, até encontrar uma pessoa (agora sim, um ser humano) chorando, sentada na calçada. Parecia ser fêmea. O homenzinho verde foi até ela:

- O que houve? Por que está chorando? (sim, o ET, de tão avançado, já sabia falar português).

- Ah, mais um para ficar em cima de mim! Nada não, não é da sua conta. Você não vai querer saber.

- Aposto que é por causa de um ser masculino, não é? Essa coisa é universal mesmo...

- Não, não é por isso. Deixa pra lá.

- Não vou deixar pra lá nada. Gostei da sua espécie, e você está chorando. Quero ajudar.

- Você fala de uma forma estranha, mas é a única pessoa que está me dando atenção de verdade, sem querer me pegar pelo cabelo. .

- Pois, então, diga o que houve.

- É o Facebook! Não estou conseguindo tirar uma foto legal para pôr no meu perfil. Hoje estou horrível, e é Carnaval! Tem que ter fotos legais, com pessoas se divertindo, e eu lá, reluzente, toda linda. Ai, ai...

- Mas você não está se divertindo, está chorando. Por que mandar fotos pra esse cara aí, o Facebook?

- Já disse que você fala estranho? Não tem cara nenhum. Bem, não diretamente. Tenho que estar feliz, para aparecer alegre lá, para todo mundo ver que eu estou “no auge”, mas não estou conseguindo. E isso está me deixando triste.

- Então por que você não aproveita a música que está tocando para curtir, dançar e se divertir?

- Você ainda não entendeu mesmo né?! Porque, se eu fizer isso, vou ficar feliz, aproveitar, mas ninguém no Facebook vai saber. Estou horrorosa para tirar fotos. Qual é a vantagem disso?

- Vamos raciocinar: você não está feliz porque não consegue ficar feliz para mostrar para os outros que está feliz. Por isso, prefere chorar a se divertir e, portanto, não vai conseguir mostrar que está feliz para os outros da mesma forma. É isso?

- Exatamente! Agora você pegou o espírito da coisa!

- Acho que você é quem não pegou o espírito, mocinha. Não adianta nada mostrar algo que não é real só para parecer que está bem. O mais importante é, de fato, estar bem. Beleza não está no que se vê. Beleza está no que se sente. Pense nisso. Adeus.

Assim, o marciano saiu andando e deixou a menina ainda chorosa, sem entender muito o que se passara ali. Partiu de volta ao seu mundo, certo de que acabara de visitar um planeta completamente atrasado. Ficou tão chocado que se esqueceu de confirmar com a moça qual o nome daquele planeta. Saiu de lá achando que era Facebook. Devia ser isso mesmo.

Ele não curtiu. 

                                           Ilustração: http://mauricioanselmo.blogspot.com.br

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Moletom


Estava caminhando pela rua, naquele dia cinzento, toda alegre e até um pouco distraída, quando algo bem estranho me chamou a atenção: uma fila enorme, com pessoas a perder de vista.

Fiquei curiosa, claro. Meu instinto feminino estava alarmado. Aquela fila, ali, tão grande, deveria ser por algum motivo dos bons. Como estava com tempo livre, aliás, não tinha nada mesmo para fazer, me entreguei à tentação e entrei.

O mais inquietante (e excitante) é que ninguém por perto sabia do que se tratava. "Parece que tem um milionário distribuindo presentes", sugeriu o senhor à minha frente. Fiquei esperançosa. Valeria à pena então.

O tempo foi passando, e a fila não andava. A galera já estava ficando impaciente. "Um absurdo!", "Que descaso com o povo", "Vou procurar o PROCON!", bradavam os mais exaltados. Como não sabia ainda do que se tratava, fiquei na minha.

De repente, sei lá de onde, surgiu uma informação (ou seria mero boato?) de que a fila, na verdade, era para a inauguração grátis de um novo restaurante. Negócio chique. Mas a fila não andava, e eu estava cada vez mais confusa. E excitada. Que mistério!

Os minutos viraram horas. O dia cinzento virou noite fria. A excitação deu lugar ao tédio. Nesse tempo, a fila já ganhara outros vários significados possíveis de sua existência: cestas básicas, ingressos para a final do campeonato, autógrafos de um cantor famoso e até entrega de chaves de casas doadas pelo governo. Ou seja, ainda valia à pena o sacrifício. Era alguma coisa boa que nos aguardava. Na verdade, que nós aguardávamos. 

E assim foi indo: não indo. 

Lembram da noite fria? Então, ela também foi embora. Deu lugar a um sol tímido, que nasceu lentamente. Tão lentamente que demorei a perceber: tudo não passou de um sonho. Aquela fila não me levava a lugar nenhum. Eu não sabia se gostava dela, não conhecia o que ela poderia me proporcionar de verdade. Mas todo mundo entrou, e fui junto. Todo mundo foi junto porque entrou. Na expectativa. Na ignorância.

Daquele dia em diante, percebi que seguir uma tendência só por seguir, sem ter vontade disso, não me leva a lugar algum.

Peguei minha pochete, vesti meu conjunto moletom e fui caminhar por aí, ouvindo Molejo. Feliz e com destino certo: aonde eu quisesse ir, como eu quisesse andar.