sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Tem que trabalhar


O arquiteto jogou uma guimba de cigarro na rua, dizendo “é bom para o gari. Ele tem que ter trabalho”.

O gari, irritado, espancou o arquiteto, pensando “o médico que tratar desse aí vai ter trabalho”.

O médico-cirurgião, ao receber o arquiteto com rosto todo desfigurado, fez uma remendada aqui e outra ali, já imaginando o trabalhão que um psicólogo teria para recuperar a autoestima do sujeito.

O psicólogo, assustado com tamanho estrago, passou a bola para um psiquiatra. Não queria trabalhar em vão. Aquele ali só melhoraria à base de remédios.

O psiquiatra receitou um tarja preta. Fez mal seu trabalho. Errou feio na dose medicada, e o arquiteto morreu. “Ferrou”, pensou, “isso agora vai ser trabalho pro meu advogado.”.

O advogado trabalhou (seu penteado), trabalhou (o corte perfeito do terno italiano) e trabalhou (no cálculo dos seus honorários). E o psiquiatra foi preso.

Desgostoso, o psiquiatra se matou dentro da cela. Deu um enorme trabalho para os carcereiros, para o coveiro e para sua esposa, que odiava pensar em trabalhar.

Também gerou trabalho para os jornalistas, que deixaram de cobrir as farras dos artistas e jogadores de futebol, para noticiar algo sério.

Tudo porque o arquiteto resolveu jogar uma inocente guimba de cigarro na rua.

Só que a vida é normal demais para uma sequência tão absurda de acontecimentos. Seria muito esquisito. Não deve ter acontecido de verdade.

É para isso que existe o escritor.

Ele também tem que trabalhar.


                                                     Ilustração: samaritana.paginas.sapo.pt

domingo, 16 de setembro de 2012

Peixe ou Pizza


Nossa história se passa nos dias atuais. Uma conversa simples, entre pai e filho. Um diálogo fictício, mas que pode ter acontecido em algum lugar, com alguma família brasileira. Seria natural. Um pai, divorciado, com seus 40 anos. Um filho, curioso, de 11.

-- Pai!

-- Sim, filhão.

-- O que é política?

-- Nossa, que pergunta! Por que você quer saber?

-- Porque eu tenho ouvido muito essa palavra, pra lá e pra cá, e nunca entendo o que quer dizer.

-- É assunto pra gente mais velha. Tem a ver com governo, direitos, deveres, enfim, essas coisas complicadas demais.

-- Você gosta de política, pai?

-- Eu? Claro que não. É muito chato e não leva a lugar nenhum. Tudo ladrão.

-- Viu?! Primeiro você fala que política é uma coisa. Agora vem falar que é coisa de ladrão. Tudo é política?

-- Não, não. É que está tudo ligado mesmo. As pessoas se candidatam para assumir o governo, reduzir nossos direitos, aumentar nossos deveres e roubar de todo mundo.

-- Ah, ta. Acho que entendi. Mas, pai, se influencia tanto na nossa vida, por que você não se interessa?

-- Porque tem coisa que é melhor nem ver. Muita sujeira.

-- A professora falou que é muito importante a gente saber sobre política. Ela disse que devemos ter um voto consciente.

-- Vocês são novos demais pra falar disso.

-- Eu queria saber mais o que é voto consciente.

-- Não importa muito. Esse negócio de governo é coisa pra alimentar pessoas que não têm o que fazer. O que importa é trabalhar, ganhar seu dinheiro e ponto.

-- E quem não tem trabalho, pai? O marido da dona Zezé não trabalha. Ela disse que está desempregado.

-- Um vagabundo, isso sim.

-- Ela disse que ele não estudou em nenhuma escola. Estranho né?

-- Viu só, filhão? O negócio é estudar, trabalhar e não ter do que reclamar depois olhando pro teto às custas do salário de doméstica da esposa.

-- Eu estudo, pai. Pode deixar.

-- Esse pessoal é muito folgado. Não estuda, não quer saber de nada e acha que vai se dar bem? Aí chega o governo e dá esmola. Esmola que nós pagamos!

-- A gente que paga pro marido da dona Zezé?

-- Como se fosse. Essa gente não quer saber de nada. Eles não querem aprender a usar o anzol, pescar e cozinhar. Eles querem o peixe prontinho. Assim é fácil.

-- Peixe?! Não entendi.

-- É forma de falar. Deixa pra lá. Perco a paciência só de pensar nisso.

-- Pai, você falou em peixe e acabou me dando fome. Vamos almoçar?

-- Boa ideia. Vamos pedir uma pizza, porque hoje é domingo, e a dona Zezé não vem.

-- Ainda vai pedir? Demora muito. Por que você mesmo não faz algo?

-- Porque eu não sei cozinhar.

-- Por que você não aprende?

-- Porque não tem quem me ensine hoje, e você está com fome. Não vai dar tempo de aprender nada agora. Deixa pra outro dia.

-- Está bem, pai. Pena que vamos pedir pizza. Se fosse peixe, a gente pedia pro governo.



sábado, 1 de setembro de 2012

Túnel

Era um cara legal. Mas tinha defeitos. Claro, todos têm defeitos. Só que os defeitos dele eram irritantes. Era um cara irritante. Muito teimoso. Tanto teimava que chegava a irritar. Mas, no fundo, tinha um bom coração. Coitado. Não era culpa sua ser teimoso. Nem irritante. Bem, talvez.

Era uma pessoa de posses. Tinha tudo que queria. Diria até que um pouco mimado. Foi criado assim, com a vida pronta para si. Como se o seu quebra-cabeças estivesse sempre completo, encaixado. Nada a reclamar. A vida era bela. Como é que existiam pessoas capazes de reclamar dela? Viver era uma dádiva. Um desfrute. Bem, talvez.

De fato, não reunia razões para achar o contrário. Era quase forçado a pensar assim. Forçado a não pensar. Na escuridão das ideias. Um sujeito pragmático. Estático. Como todos os seus atos. Uma visão precária. Parcialmente nula. Totalmente contaminada. Sem alcance. Caminho sem ida nem volta. Bem, talvez.

Um belo dia, que mais parecia uma bela noite, ele viu uma miragem. Parecia uma miragem. “Estou ficando doido”, pensou. Era um clarão. Uma luz. Parecia o céu. “Será que morri, de repente?”, se perguntou. Só que não havia anjos e harpas. Não, ele não tinha morrido. Podia ser um sonho. Não havia nada que indicasse que aquilo era de verdade. Só um clarão imenso. A promessa de uma luz. Será que Freud explicaria? Bem, talvez.

Não, não explicaria. Não era sonho nenhum. Ele se beliscou. Doeu muito. Então era tudo ainda de carne e osso. Mas o que seria aquela luz? Aonde daria aquele clarão? Uma loucura. Chegou mais perto. Receoso. Trêmulo. Não conseguiu enxergar bem o que era. Quer dizer, até viu, mas não entendeu nada. Era um túnel, com uma luz ao fundo. O tal do clarão. Ficou tentado. A luz normalmente é muito chamativa. Valia arriscar e ir em frente? Bem, talvez.

A resposta nós nunca saberemos. Ele não tentou. Achou que não tinha motivos para entrar e seguir em frente. Estava bem onde estava. Ficou ali. Feliz, mesmo com a escuridão à sua volta. Pouco importava aquela luz. Tinha tudo o que queria, e a vida era perfeita.

Bem, talvez.