Globalização.
Internet. Classe “C”: o mundo estava perdido.
“Deus
nos livre de sermos contaminados por toda essa gente cada vez mais sem pudor,
sem elegância, sem classe. Sem exclusividade.”
Em dois
parágrafos, este era o resumo do que pensavam os moradores daquele luxuoso condomínio.
Ali o lugar era bem seleto, por isso de apenas três blocos, sem aceitar
locações. Um condomínio fechado. Cercado. Mas não por muito tempo.
Ainda
assim, os assustados moradores viam grande necessidade de mudança. Algo devia
ser feito. O medo imperava. Foi nesse contexto que surgiu a convocação daquela assembleia
do condomínio.
Sem
titubear, o seu Renato, do bloco 1, veio de sola, começando os trabalhos:
-- Esse
lugar está uma bagunça! Nunca vi. Ultimamente, tem entrado qualquer um. Não
pode. Voto para que ninguém mais entre aqui sem ter uma autorização. Tipo um
visto, daqueles pros Estados Unidos.
O
que parecia ser uma sugestão estranha, na realidade, foi aceita por
unanimidade. O condomínio mudou lá na sua convenção: todos que quisessem entrar
deveriam ter um visto (sim, utilizaram essa nomenclatura mesmo, porque era mais
chique). O tal visto, resolveram, incluía novos moradores, entregadores de
pizza, encanadores, amigos e até técnicos de TV a cabo, embora estes últimos nunca
aparecessem por lá.
Alívio
geral: a limpeza estava começando a arejar o ambiente. Enfim, tinham tocado o
dedo na ferida. Só que a decisão sobre o visto não podia ser a única. A
higienização não podia parar por aí. Por isso, logo na sequência, a dona
Eulália, do bloco 2, disparou:
--
Por que alterar a convenção? Isso é muito normalzinho. Acho que devemos
rasgá-la e aproveitar essa assembleia para formar uma constituinte. Agora teremos
uma Constituição só nossa. O que acham? Como se fôssemos um país!
Diante
do contexto, não foi surpresa que esta sugestão também havia sido aprovada. Ali
estava a primeira constituinte daquele condomínio “soberano”. Um momento
histórico. Mas quem iria registrar? Nisso, o seu Rogério (marido da dona
Eulália) veio com a brilhante ideia:
-- Que
tal termos um Diário Oficial? Só do condomínio, a quem interessar. Esses
momentos devem ser registrados, além de muitos outros que com certeza virão.
Aliás, vou mais adiante. Para dar flexibilidade, podemos ter um Diário Oficial
e também uma imprensa livre, independente. Nós do bloco 02 podíamos ficar
encarregados, já que estamos no meio. É mais fácil para ver as coisas.
Aceitação geral novamente.
Estava
sacramentado: o bloco 1 ia cuidar do Diário Oficial, enquanto que o 3 emitiria
os vistos e toda a sua parte burocrática. Já o bloco 2 seria o encarregado pelo
jornal do condomínio. Uma lindeza só.
Agora
sim o condomínio seria um belo lugar para viver.
Mas
aí, lá no canto da sala, um gaiato, até então quieto, resolveu abrir a boca:
-- Olha,
galera, está tudo muito bacana, mas eu tenho uma pergunta a vocês. Como parte
do bloco 02, me considero da tal “imprensa livre” que o Rogério propôs. Pois
então, a minha dúvida é a seguinte: muitos dos condôminos supostamente possuem supostos
casos supostamente extraconjugais e trazem seus “amigos” para o condomínio,
como nosso próprio Rogério ali. Essas pessoas precisarão de visto? Como fica a privacidade? Ah, por
sinal, amanhã pensei que uma boa manchete de capa seria o romance da Eulália com
o Renato, já que eles também estão supostamente tendo um caso. Se bem que, aí,
os dois já teriam visto mesmo – terminou, sorrindo.
Os
vinte segundos seguintes foram de um silêncio cortante na alma. Todos estavam
ainda assimilado as palavras do gaiato do bloco 02. Soco no estômago.
Passado
o choque, veio o seu Renato e acabou com a história, de novo de sola:
-- Gente,
diante de novos fatos, voto para que essa assembleia seja cancelada. E todas as
suas respectivas decisões também.
Decisão
unânime, todos concordaram numa rapidez histórica. Esqueceram rapidinho aquele papo de mundo perdido.
Assim,
os moradores foram para casa, como se nada tivesse acontecido.
Menos
o gaiato.
Na
verdade, ele não morava no bloco 2. O rapaz era o filho de um dos porteiros, seu Olcimar, e se chamava João. Ninguém
lá o conhecia. Pelas normas do condomínio, os filhos dos funcionários não
podiam transitar na área comum. João aproveitou a brecha de estarem todos
atentos à tão importante reunião e se infiltrou.
Também
por ser filho do porteiro, o rapaz sabia de todas as fofocas. Ninguém tinha
percebido o tiro no pé que iam dar com aquela assembleia. Foi preciso um
malandro de fora para jogar na cara deles o quanto estavam
sendo estúpidos.
Quase
não perceberam que, ao se fechar, seriam pegos em vários pecados flagrantes.
Ficariam
com as calças arriadas.
Sem
pudor, sem elegância, sem classe.
Ah,
a vida: esse vasto lugar de ironias baratas por metro quadrado, que prega peças a quem
quer que seja.
Sem exclusividade.
Sem exclusividade.
Quadro de Tarsila do Amaral: "Operários"
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