terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Joões-Ninguém


Globalização. Internet. Classe “C”: o mundo estava perdido.

“Deus nos livre de sermos contaminados por toda essa gente cada vez mais sem pudor, sem elegância, sem classe. Sem exclusividade.”

Em dois parágrafos, este era o resumo do que pensavam os moradores daquele luxuoso condomínio. Ali o lugar era bem seleto, por isso de apenas três blocos, sem aceitar locações. Um condomínio fechado. Cercado. Mas não por muito tempo.

Ainda assim, os assustados moradores viam grande necessidade de mudança. Algo devia ser feito. O medo imperava. Foi nesse contexto que surgiu a convocação daquela assembleia do condomínio.

Sem titubear, o seu Renato, do bloco 1, veio de sola, começando os trabalhos:

-- Esse lugar está uma bagunça! Nunca vi. Ultimamente, tem entrado qualquer um. Não pode. Voto para que ninguém mais entre aqui sem ter uma autorização. Tipo um visto, daqueles pros Estados Unidos.

O que parecia ser uma sugestão estranha, na realidade, foi aceita por unanimidade. O condomínio mudou lá na sua convenção: todos que quisessem entrar deveriam ter um visto (sim, utilizaram essa nomenclatura mesmo, porque era mais chique). O tal visto, resolveram, incluía novos moradores, entregadores de pizza, encanadores, amigos e até técnicos de TV a cabo, embora estes últimos nunca aparecessem por lá.

Alívio geral: a limpeza estava começando a arejar o ambiente. Enfim, tinham tocado o dedo na ferida. Só que a decisão sobre o visto não podia ser a única. A higienização não podia parar por aí. Por isso, logo na sequência, a dona Eulália, do bloco 2, disparou:

-- Por que alterar a convenção? Isso é muito normalzinho. Acho que devemos rasgá-la e aproveitar essa assembleia para formar uma constituinte. Agora teremos uma Constituição só nossa. O que acham? Como se fôssemos um país!

Diante do contexto, não foi surpresa que esta sugestão também havia sido aprovada. Ali estava a primeira constituinte daquele condomínio “soberano”. Um momento histórico. Mas quem iria registrar? Nisso, o seu Rogério (marido da dona Eulália) veio com a brilhante ideia:

-- Que tal termos um Diário Oficial? Só do condomínio, a quem interessar. Esses momentos devem ser registrados, além de muitos outros que com certeza virão. Aliás, vou mais adiante. Para dar flexibilidade, podemos ter um Diário Oficial e também uma imprensa livre, independente. Nós do bloco 02 podíamos ficar encarregados, já que estamos no meio. É mais fácil para ver as coisas.

Aceitação geral novamente.

Estava sacramentado: o bloco 1 ia cuidar do Diário Oficial, enquanto que o 3 emitiria os vistos e toda a sua parte burocrática. Já o bloco 2 seria o encarregado pelo jornal do condomínio. Uma lindeza só.

Agora sim o condomínio seria um belo lugar para viver.

Mas aí, lá no canto da sala, um gaiato, até então quieto, resolveu abrir a boca:

-- Olha, galera, está tudo muito bacana, mas eu tenho uma pergunta a vocês. Como parte do bloco 02, me considero da tal “imprensa livre” que o Rogério propôs. Pois então, a minha dúvida é a seguinte: muitos dos condôminos supostamente possuem supostos casos supostamente extraconjugais e trazem seus “amigos” para o condomínio, como nosso próprio Rogério ali. Essas pessoas precisarão de visto? Como fica a privacidade? Ah, por sinal, amanhã pensei que uma boa manchete de capa seria o romance da Eulália com o Renato, já que eles também estão supostamente tendo um caso. Se bem que, aí, os dois já teriam visto mesmo – terminou, sorrindo.

Os vinte segundos seguintes foram de um silêncio cortante na alma. Todos estavam ainda assimilado as palavras do gaiato do bloco 02. Soco no estômago.

Passado o choque, veio o seu Renato e acabou com a história, de novo de sola:

-- Gente, diante de novos fatos, voto para que essa assembleia seja cancelada. E todas as suas respectivas decisões também.

Decisão unânime, todos concordaram numa rapidez histórica. Esqueceram rapidinho aquele papo de mundo perdido.

Assim, os moradores foram para casa, como se nada tivesse acontecido.

Menos o gaiato.

Na verdade, ele não morava no bloco 2. O rapaz era o filho de um dos  porteiros, seu Olcimar, e se chamava João. Ninguém lá o conhecia. Pelas normas do condomínio, os filhos dos funcionários não podiam transitar na área comum. João aproveitou a brecha de estarem todos atentos à tão importante reunião e se infiltrou.

Também por ser filho do porteiro, o rapaz sabia de todas as fofocas. Ninguém tinha percebido o tiro no pé que iam dar com aquela assembleia. Foi preciso um malandro de fora para jogar na cara deles o quanto estavam sendo estúpidos.

Quase não perceberam que, ao se fechar, seriam pegos em vários pecados flagrantes. 

Ficariam com as calças arriadas.

Sem pudor, sem elegância, sem classe.

Ah, a vida: esse vasto lugar de ironias baratas por metro quadrado, que prega peças a quem quer que seja.

Sem exclusividade.




                                                   Quadro de Tarsila do Amaral: "Operários"

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