domingo, 27 de janeiro de 2013

Andar de bicicleta*

Caminho pela praça. É verão. Mas verão no Sul não é tão verão assim. Sinto a brisa da estação na cara. Estamos naquele período bonito, da brisa, da cor, da vida. Vida que levou um choque. Com o branco em minha mente, não tenho como preencher o vazio. A despedida foi para sempre. Tudo me fazia pensar nela.

Éramos noivos. Eu a amava demais. Iríamos nos casar dali a alguns meses, na próxima primavera. Era sua vontade o casamento na estação das flores. Nunca entendi. E ficarei sem entender. Ela cuidava de tudo sobre o matrimônio. Desde a decoração até a banda que iria tocar. Eu nem ligava muito. O mais importante era casar com a pessoa certa. E ela era, eu sabia disso.

A verdade é que mal consigo raciocinar sobre tudo o que aconteceu. Um trauma profundo, uma dor na alma. Lembrar, agora, não trará o passado de volta. E a própria dor aumenta. Dá uma queimação. Me sinto asfixiado. Uma ânsia que me faz vomitar.

Soa até metafórico, apesar de real. Sinto grande vontade de externar tudo que está dentro do mais obscuro baú das lembranças. Me empenho. Fecho os olhos. A conversa, aquela derradeira, se materializa aos poucos em minha cabeça:

-- Deixa de ser bobo. A gente confia um no outro, não é?

-- Eu sei, é que gosto tanto de passar mais tempo contigo. Como é que vou ficar sozinho?

-- Deixa de ser dramático. É só uma noite, uma festinha à toa. Daqui a pouco a gente já vai se ver de novo. Amanhã não tem aquele churrasco do seu tio?

-- É, tudo bem. Você quer se livrar de mim, então tá.

-- Engraçadinho. Não é isso. Nem sempre dá pra ir a todos os eventos juntos.

-- Eu sei. A gente tem que pensar no nosso futuro também.

-- Isso. Porque o mais importante é que te amo.

-- Também te amo. Até amanhã.

O abraço foi forte. A saudade, já grande. E ficaria maior, sem que eu ainda soubesse.

Poucas horas depois dessa nossa última conversa, a tal festa começou, mas nunca teve a chance de terminar: a boate sofreu um incêndio, deixando destroços (e corpos) no meio do recinto. Sem saber, deixou, também, corações queimados e em frangalhos. Entre vítimas, familiares e simplesmente seres humanos minimamente sensíveis, a dor foi profunda, de proporções dantescas. O trauma foi clareando em meio a um luto que mais parecia um buraco negro faminto e voraz.

Com muita tristeza ao relembrar de tudo, volto às andanças ainda pela praça, um pouco absorto em minhas memórias esfiapadas. De tão distraído, quase esbarro em duas pessoas: um homem e um menino. Deviam ser pai e filho. Passo a prestar atenção neles, com maior curiosidade.

O menino, em cima de uma bicicleta, cambaleia inseguro, contando com o auxílio paterno. Ele olha para os lados e clama por ajuda. Não se desprende. E não anda. De repente, o pai fecha os olhos da criança, que não percebe: ninguém mais o ajudava. Andou sozinho. Abriu os olhos e percebeu. Sorriu. E eu sorri junto, hipnotizado por aquela imagem marcante.

Foi quando me dei conta de algo estranho: a sensação de já ter visto aquela cena antes. Tudo muito familiar. Imagens isoladas passaram a povoar meus pensamentos e lá fui eu de novo divagar pelas lembranças. A bicicleta, o menino, o pai, os sentimentos de perigo e consagração sobre duas rodas, a praça, a brisa e o clarão.

Ficou tudo claro, como se de repente um estalo tivesse surgido. Ou alguém tivesse me dado um impulso para a verdade, assim como o homem na praça.

O quebra-cabeças começou a se encaixar, mesmo não tendo qualquer controle sobre essa retomada. Veio, de repente, a revelação dentro da minha mente: aquele menino era eu. Meu pai. Minha bicicleta. Minha praça. Minha consagração. Minhas lembranças.

Tudo fazia parte de um contexto, e, em nenhum momento, eu havia ligado os pontos. As saudades da minha noiva, as andanças solitárias por aí, a brisa, a memória despedaçada e aos poucos reconstruída.  Era um ciclo que conectava os fatos de uma forma que jamais havia percebido. Talvez por ter ficado tempo demais chorando a perda do grande amor da minha vida, não me dei conta de que foi ela quem me perdeu. Literalmente.

Agora me lembro bem.

Nós realmente nos abraçamos e nos despedimos.

Tínhamos a festa mesmo.

A boate de fato se incendiou.

Mas não era ela quem estava lá. Era eu!

Era eu.

Nunca pensei que fosse chegar esse momento, muito menos assim, tão pensativo. Tão morto e tão vivo.

Só me resta aguardá-la para vivermos, juntos, nossa eternidade.

Porque o verdadeiro amor a gente nunca esquece.

É como andar de bicicleta. 

*Obs: esse conto é uma pequena e impotente homenagem às vítimas e familiares da tragédia ocorrida na madrugada de hoje, na boate Kiss, de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Este blog presta sua solidariedade num momento tão difícil. Muita força a todos os envolvidos. Vão precisar.



2 comentários:

  1. Belo texto, Rodrigo. Carregado de uma emoção que nós dividimos com aqueles que perderam seus queridos, mesmo sabendo que nossa dor jamais poderá se comparar a deles.
    As palavras, e o gesto de utilizá-las, é o que nos resta, e o que temos.
    Abraços.

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  2. Sem palavras... Vc, nesse lindo texto soube expressar todos os sentimentos reunidos e aflorados, não só daqueles que perderam seu ente ou amigo querido, como todos que sentiram uma profunda tristeza com tamanha tragédia. Para aliviar um pouco essa dor, o melhor remédio é colocar p/ fora toda emoção em lindas e verdadeiras palavras, que por sinal, foram muito bem redigidas por vc.

    Bjs

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